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Diários de quarentena: entre as pesquisas e as crianças

Estamos quarentenados. De repente, as fronteiras físicas entre o trabalho e a casa ficaram mais difusas. Como pesquisadores, muitos de nós estamos acostumados a levar o trabalho para casa, mas não sabíamos muito bem como lidar com o trabalho integral dentro de casa. Estamos convivendo com novos elementos de ansiedade por conta da incerteza relacionada à pandemia. Como se não bastasse, a postura do Governo Federal é também um foco de estresse, e não de segurança, para a população. Pesquisas de diversas áreas hoje estão paradas por conta das recomendações de distanciamento social. Quem já tem dados coletados e está em fase de análise e escrita está “aproveitando” o isolamento focado nesses trabalhos. Quem ainda não está nessa fase se virando nos 30 pra inventar o que produzir nesse período, enquanto não pode dar seguimento aos projetos planejados. E quem tem filho pequeno? Aí o malabarismo é intenso!

Preocupações compartilhadas, outras nem tanto…

Conversando com colegas um dia desses, percebi que compartilhamos muitas preocupações, principalmente em torno da incerteza sobre a retomada de atividades, a subnotificação dos casos nas estatísticas brasileiras e os nossos projetos que estão parados. Contudo, nem todo mundo tem filho, o que gera uma nova dimensão de desafios. Devo confessar, cuidar de criança pequena no dia-a-dia conciliando com o trabalho em casa tem sido o aspecto mais desafiador para mim nessa quarentena.

Apesar de estarmos em 2020, ainda existe bastante disparidade na divisão do trabalho doméstico entre homens e mulheres, e isso também é observado entre acadêmicos. Um fator interessante nesse aspecto é que há uma maior proporção de homens que têm parceiras que não trabalham fora de casa. Já para as pesquisadoras, principalmente da área de ciências naturais, é mais provável que tenham um parceiro que também é acadêmico. (Veja mais detalhes sobre essas estatísticas aqui.) Em uma pesquisa com docentes no Brasil, todos os entrevistados valorizaram o trabalho da mulher, mas só as mulheres mencionaram as atividades domésticas como um fator a ser conciliado com o trabalho (leia aqui o artigo). Acho que essa discrepância ficou bem patente agora nesses tempos de pandemia, principalmente com relação aos cuidados com os filhos, que também passam o dia inteiro em casa. Conversei com colegas em situação semelhante e todas tivemos essa experiência: participar de reunião com uma criança no colo ou não poder participar de alguma reunião porque está cuidando dos filhos.

Já vemos alguns efeitos

Bom, se você está se sentindo sobrecarregada e com dificuldade para manter a produtividade acadêmica, a boa notícia é que não, você não está sozinha. Esse problema não é exclusivo, ele é estrutural. A má notícia é que sim, as mulheres estão publicando menos. Comparando preprints de março e abril de 2020 com o mesmo período de 2019, percebe-se que a autoria de homens cresceu mais que a autoria de mulheres (crescimento de 2,7% para mulheres e de 6,4% para homens). Acredito que já pode haver uma influência da quarentena nesses números, mas é provável que esses trabalhos submetidos recentemente tenham sido desenvolvidos ao longo de vários meses antes, por isso é importante avaliar projetos mais recentes. Avaliando o registro de novos projetos, é possível observar uma diminuição na proporção de cientistas mulheres comparando esse mesmo período nos dois anos. Essa tendência fica bem clara quando são avaliados trabalhos relacionados à Covid-19, que têm chamado bastante atenção dentro e fora da comunidade acadêmica e têm passado pelas revisões relativamente bem rápido: a proporção na autoria de mulheres diminuiu.

No Brasil, o projeto “Parent in Science” surgiu das observações do impacto da maternidade na carreira das mães acadêmicas. Visite o site para participar da pesquisa sobre os impactos da pandemia, assim poderemos ter dados mais próximos da nossa realidade. O canal no Youtube do “Parent in Science” tem vários vídeos interessantes e já traz a discussão em torno do trabalho em tempos de pandemia. Independente da fonte dos dados, havemos de concordar que essa quarentena é um evento muito recente, então só veremos os impactos práticos que esse período terá nas nossas carreiras daqui a vários meses.

A discussão sobre a igualdade entre os gêneros é antiga, e essas questões de disparidade também sempre existiram no mundo acadêmico, talvez tenham sido ressaltadas apenas com a pandemia. Essas diferenças podem afetar bastante jovens pesquisadoras em início de carreira, montando seus laboratórios e estabelecendo suas linhas de pesquisa. Mas muitas de nós não sentiram essa diferenciação entre os colegas ou para aprovar orçamentos de projetos, até que veio a maternidade. Mesmo as mulheres que vivem com parceiros que dividem as tarefas domésticas e são ativos nos cuidados com o bebê não escapam de serem especialmente sobrecarregadas com a maternidade e correm o risco de ficar para trás no número de citações dos seus artigos, aprovação de recursos e publicações. Isso pode ocorrer por vários motivos, como não ter tempo para viajar para congressos ou menos tempo na prática para a pesquisa, por exemplo. Esses entre outros fatores contribuem para a disparidade entre os gêneros que é observada na autoria de trabalhos acadêmicos, principalmente nas áreas chamadas STEM (Science, Technology, Engineering, and Mathematics).

Como lidar?

No meu caso, eu moro com o meu parceiro, então nós dividimos turnos para cada um ficar plenamente responsável pelas crianças, assim cada um tem o seu turno de trabalho “despreocupado”. Obviamente só podemos fazer isso porque temos flexibilidade no nosso trabalho. Temos um escritório que é a zona livre de crianças, assim tenho um local e um horário em que não serei interrompida (a não ser que tenha alguma urgência, claro). Muitas vezes estou trabalhando de noite, quando os meninos já foram dormir… E aceito sugestões de dicas para facilitar essa conciliação!

De qualquer jeito, a pandemia vai passar (mais cedo ou mais tarde), mas parte dessas questões vão permanecer. Para essa crise, seria necessário estender as bolsas de estudantes e pós-doutorados. Para além da crise, é muito importante que as universidades e institutos de pesquisa tenham creches para atrair jovens pesquisadoras e facilitar sua rotina. Os próprios congressos poderiam ter espaço tipo creche, para que possamos viajar com as crianças e participar desses eventos. Facilitar o acesso de todos sempre deixará a ciência mais forte.

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